quarta-feira, 18 de abril de 2012

FELICIDADE CLANDESTINA - Palavra de Professor

Minhas leituras de Clarice Lispector sempre provocaram conflitos intimistas, mexendo com minha forma de ver e pensar o mundo. E foi exatamente esse sentimento que voltei a vivenciar quando resolvi reler Felicidade Clandestina. Clarice nunca se preocupou com as formalidades do exercício de ser escritora. Para ela o importante era a revelação da alma, dos sentimentos, conflitos e contradições que todos nós temos diante da rotina da vida.
Considerado um livro de contos, Felicidade Clandestina resgata as memórias cotidianas de Clarice na cidade do Recife. São vinte cinco contos com diversas temáticas, narrativas e comentários de cenas corriqueiras, aparentemente despretensiosas, mas que ganham um contorno especial de introspecção analítica, que só Clarice Lispector sabe fazer. E é essa a principal característica dos contos de Felicidade Clandestina, a revelação do tabuleiro que se impõe para o intrincado jogo de nossas vidas.
As ruas da cidade do Recife, o carnaval, a paixão pelos livros, os encontros e desencontros amorosos, a senhora adotada que depois foi abandonada, o garoto que queria ser amado, o ovo, a galinha ( o ovo e a galinha ), o primeiro beijo, a tentação e até Deus são temas de Felicidade Clandestina. Lendo esses contos, nos percebemos, quase que por acaso, refletindo sobre nossa essência. Clarice nos empurra para a eterna busca de sentido para as nossas vidas.
Felicidade Clandestina nos convida a pensar sobre aquilo que existe de universal na vida de todos nós. Convida-nos à reflexão, como no conto Restos de Carnaval: “...e então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa”, disse a garotinha entusiasmada pelo galanteio recebido de um garoto folião. Todos nós queremos ser reconhecidos. O reconhecimento é parte estruturante da nossa personalidade, do nosso ser. Esse movimento de autoconhecimento está presente em quase todos os contos do livro.
A professora e escritora Nelly Carvalho, em uma determinada entrevista, disse que o bom livro é aquele que depois de lido muda as nossas vidas. Seguindo sua orientação, posso dizer que Felicidade Clandestina é um bom livro. Cada conto lido nos provoca, amplia nossa inquietude, nos fazendo perceber que estamos vivos.
O título do livro, que também é um conto, já sinaliza uma provocação. Clarice exercita a epifania de uma forma impecável. Talvez o grande questionamento dessa obra seja o por quê da nossa felicidade ser “amparada” pela clandestinidade. Os contos de Clarice revelam a duplicidade de nossas vidas, a dicotomia entre o que é aceito e o que adoramos. Nessa vida nebulosa e superficial, optamos quase sempre pela clandestinidade na busca de uma felicidade acanhada, que tem medo de ser reconhecida, pois na maioria das vezes é pura contravenção.

Lula Couto

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