
Considerado um livro de contos, Felicidade Clandestina resgata as memórias cotidianas de Clarice na cidade do Recife. São vinte cinco contos com diversas temáticas, narrativas e comentários de cenas corriqueiras, aparentemente despretensiosas, mas que ganham um contorno especial de introspecção analítica, que só Clarice Lispector sabe fazer. E é essa a principal característica dos contos de Felicidade Clandestina, a revelação do tabuleiro que se impõe para o intrincado jogo de nossas vidas.
As ruas da cidade do Recife, o carnaval, a paixão pelos livros, os encontros e desencontros amorosos, a senhora adotada que depois foi abandonada, o garoto que queria ser amado, o ovo, a galinha ( o ovo e a galinha ), o primeiro beijo, a tentação e até Deus são temas de Felicidade Clandestina. Lendo esses contos, nos percebemos, quase que por acaso, refletindo sobre nossa essência. Clarice nos empurra para a eterna busca de sentido para as nossas vidas.
Felicidade Clandestina nos convida a pensar sobre aquilo que existe de universal na vida de todos nós. Convida-nos à reflexão, como no conto Restos de Carnaval: “...e então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa”, disse a garotinha entusiasmada pelo galanteio recebido de um garoto folião. Todos nós queremos ser reconhecidos. O reconhecimento é parte estruturante da nossa personalidade, do nosso ser. Esse movimento de autoconhecimento está presente em quase todos os contos do livro.
A professora e escritora Nelly Carvalho, em uma determinada entrevista, disse que o bom livro é aquele que depois de lido muda as nossas vidas. Seguindo sua orientação, posso dizer que Felicidade Clandestina é um bom livro. Cada conto lido nos provoca, amplia nossa inquietude, nos fazendo perceber que estamos vivos.
O título do livro, que também é um conto, já sinaliza uma provocação. Clarice exercita a epifania de uma forma impecável. Talvez o grande questionamento dessa obra seja o por quê da nossa felicidade ser “amparada” pela clandestinidade. Os contos de Clarice revelam a duplicidade de nossas vidas, a dicotomia entre o que é aceito e o que adoramos. Nessa vida nebulosa e superficial, optamos quase sempre pela clandestinidade na busca de uma felicidade acanhada, que tem medo de ser reconhecida, pois na maioria das vezes é pura contravenção.
Lula Couto
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